terça-feira, 26 de outubro de 2010

Sorriso feito retrovisor

        



        Depois de uma rápida parada no ponto quase vazio naquele horário, o ônibus começou a se movimentar. Passei pela catraca e, antes mesmo de me acomodar, percebi um homem que corria desesperadamente tentando alcançá-lo. Não conseguiria, a menos que eu...Não, não o faria. O impulso de ajudá-lo foi subitamente interrompido pelas lembranças dos meus desacertos. Precisava de que situações como aquela se repetissem ao longo do dia, o que, esperava, me traria algum alívio até o final da tarde.
Não desejava que acontecesse nada de muito grave a ninguém. Pequenos tropeços me pareciam suficientes. Nada que me carregasse a alma. Pequenas culpas, como costumava dizer um amigo, não tinham natureza cármica.
         Mas o que via? O homem não desistiu, continuava a acenar e a correr num ritmo cada vez mais acelerado. Não o julgava capaz de correr assim tão rápido. Olhei para os outros passageiros, já me invadindo o receio de que pudessem vê-lo, porém, logo me tranqüilizei: estavam tão imersos nas suas preocupações que nada perceberam.
Repentinamente, como que atendendo ao meu desejo, o ônibus sem razão aparente, começou a ganhar velocidade. Olhei para o motorista, buscando um motivo para aquele súbito avançar, e o que vi? Um sorriso feito retrovisor. O sorriso de quem, desde o início, percebera tudo o que estava acontecendo e que, cúmplice, se regozijava ao ver minha expressão de alívio, à medida que o veículo se distanciava.
         Ele também tinha a necessidade de deleitar-se com o infortúnio alheio, na vantagem de estar amparado pela lei – afinal, o homem não se encontrava no ponto no momento certo. Era esta a sua forma de desforra: os retardatários.
         Através deles é que se vingava por ter que estar ali todos os dias, permitindo aos usuários o acesso a diversos lugares e interesses, e só raramente recebendo de alguns deles uma palavra de agradecimento. Ele, entretanto, lograva justificar-se. Mas...e quanto a mim?Que haviam feito a mim os retardatários? Pruridos de falsa moral, não importava que, de momento, não pudesse justificar-me. Olhei novamente para o motorista e senti no seu olhar o mais perfeito entendimento. Fiz minhas as suas razões, sorri e acenei para ele: éramos afins.

José Alberto Silveira Santos (meu pai)

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