terça-feira, 26 de outubro de 2010

O aniversário






        Depois de mais um dia voltado a observação indiferente e, por conseguinte, imparcial da rotina doméstica, assim que anoitece, uma vez satisfeitas as prescrições medicamentosas inerentes aos idosos, não recolho-me, como pensei em dizer; o recolher já é há muito tempo um estado natural. Apenas saio do caminho que é de bom tom nesses tempos nervosos. Minha nora que tem se mostrado pouco tolerante em relação a mim, mais haverá de ficar quando meu filho comunicar-lhe a sua mais recente decisão: A data do meu aniversário se aproxima, haverá comemoração depois de tantas passagens apenas lembradas.
        Quando meu filho fez-me saber da sua decisão, antes mesmo de pensar no que significaria para mim, ocorreu-me pensar que haveria resistência por parte de minha nora, o que acabou ocorrendo. No entanto, após breve discussão, ela embora relutante em dar-se por vencida, consentiu.
Não fiquem indignados por mim. Cheguei a uma fase da vida (comemorar-se à os meus oitenta anos de existência) em que um homem deixa de ressentir-se com aqueles que se opõem aos seus desejos, o que é compreensível, haja vista a intensidade com que esses costumes se manifestam.
Além do mais, há muito tempo compreendi que a velhice é a fase das alianças. Não nos é dado ignorar a importância dos lençóis trocados diariamente, das gotas de remédio que caem cuidadosamente umas sobre as outras no fundo das águas depositadas num copo, da pressão arterial medida sistematicamente todas as manhãs, culminado, por fim, no indispensável auxílio na hora dos banhos. Em tempos distantes, só de pensar na possibilidade de um dia, ter que expor meu corpo completamente destituído de atrativos ao olhar de uma outra pessoa, qualquer que fosse, enchia-me de pavor, no entanto, agora que a situação se apresenta, o corpo sem reação deixa-se banhar.
Faço esforço para sentir-me constrangido, ao perceber no rosto de minha nora, o insinuar de um sorriso só a muito custo reprimido diante da visão de partes que um dia tiveram funções variadas, e que hoje primam pela incontinência. Porém, a vaidade antecipou-se a mim: há muito que se foi.
A perspectiva da comemoração faz com que o velho cedro remonte aos tempos de infância. As imagens dos aniversários vêm à tona com força surpreendente. Vê-se a si mesmo, um menino tímido por natureza, e tornado ainda mais acanhado devido à insignificância do presente que tem em mãos. Aproxima-se então, tenso, na expectativa de que o aniversariante formulasse a pergunta que sabia inevitável: O que você trouxe pra mim? Antes mesmo que ele estendesse os braços no gesto de entrega, o presente era apanhado de suas mãos, quase sempre seguido de uma demonstração de repúdio – que tinha como conseqüência torná-lo esquivo e arredio, impedindo-o de vivenciar plenamente uma situação tão ansiosamente aguardada.
Por que tinha que ser sempre uma caixinha contendo três sabonetes? Se perguntava num repente de indignação ao sentir a desproporção existente entre o que oferecia aos aniversariantes e o brilho das festividades.
Quando a situação se invertia, e ele se via na condição de aniversariante, a timidez cedia lugar a indignação ao sentir a desproporção existente entre o que oferecia aos convivas e a natureza dos presentes recebidos. Agora, no entanto, em razão da ausência total de expectativas, não haveria frustrações. Antevia o bolo rodeado de velinhas, e também a natureza dos presentes que haveria de receber. Mentalmente vai repassando-os um a um: uma caixa de lenços –estampados, que são mais higiênicos -, alguns pares de meias, - certamente de cor escura -, água de cheiro – esta, sim, indispensável – e mais alguns itens, todos eles primando pela utilidade.
Tudo se passou conforme previu. No momento oportuno, aproximou-se do bolo, encheu os pulmões e soprou. Um sorriso de satisfação estampou-lhe no rosto ao comprovar que algumas velas permaneceram acesas. Tudo acontecera conforme o esperado – pensa -, enquanto enche de novo os pulmões de ar, preparando-se para uma nova investida... 


José Alberto Silveira Santos (meu pai)

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